O que é a Filosofia Clínica
Lúcio Packter
Lúcio Packter
“A Filosofia Clínica é a filosofia acadêmica direcionada à clínica, realizada unicamente por filósofos formados em faculdades reconhecidas pelo Ministério da Educação ou em instituições que, pelo grau de qualificação, sejam aprovadas pelo Instituto Packter.
O discurso então é direcionado aos filósofos. Entendo que seria um atentado ético às pessoas se os filósofos clínicos não fossem primeiro formados em Filosofia.
Na Faculdade de Filosofia nós aprendemos Teoria do Conhecimento ou Epistemologia, Ética, Lógica, Ontologia, Metodologia, Filosofias da Ciência, da Religião, da História, Metafísica, Linguagem, História da Filosofia, teorias de algumas dezenas de filósofos importantes e ainda muito mais.
Esses ensinamentos são a base da nossa clínica.
O filósofo clínico usa seus conhecimentos filosóficos, com método e fundamentação, na terapia da pessoa.
Definir a quem se dirige o trabalho do filósofo clínico é algo por demais simples e ainda abrangente: a todo aquele que buscar seus serviços, como terapeuta, com o intuito de vivenciar a filosofia em questões existenciais. Por exemplo: desde consultoria a empresas até terapia em grupos ou individual; desde terapia comunitária até atendimentos a instituições ou mesmo avaliações de sistemas ideológicos.” Extraído do livro “Propedêutica”.
Filosofia Clínica, o que é isto?
Monica Aiub
Resumo: Questões existenciais, problemas com relacionamentos, angústias, dificuldades na vida são motivos que levam várias pessoas a procurar um filósofo clínico. Essa atividade, ao mesmo tempo antiga – pois data da origem da filosofia o cuidado da alma – e nova – pois se apresenta como um novo paradigma surgido para responder às necessidades contemporâneas do ser humano, tem gerado muita polêmica tanto no meio acadêmico como entre as psicoterapias. De que se trata, afinal, a Filosofia Clínica? Uma breve apresentação de seus fundamentos, origens e instrumental, assim como sua íntima relação com questões éticas é o objeto do artigo Filosofia Clínica: o que é isto?
Há momentos na vida em que não conseguimos organizar nossas idéias, nos encontramos como que absorvidos pelos problemas, sem um distanciamento suficiente para compreendê-los. Em outras situações, as dificuldades diante de uma escolha, de uma tomada de decisão, de uma ação necessária parecem ser um entrave intransponível, e ao mesmo tempo, insuportável. Questões existenciais que geram sofrimentos, angústias, medos incontroláveis. Momentos difíceis, onde viver parece uma eterna luta, uma guerra diária consigo mesmo. Momentos em que o outro é nosso inferno, não é capaz de compreensão, sua presença é significada como cobrança e sua ausência como rejeição ou indiferença. Relacionamentos difíceis no trabalho, emoções conturbadas, problemas com a família, com a casa, com as contas, com a sobrevivência, com o espelho. Situações difíceis, onde os caminhos escapam, onde reina a confusão. Sentimos necessidade de ajuda para organizar as idéias, mas os amigos parecem mais confusos e perdidos que nós. Aqueles com os quais convivemos parecem não ter ouvidos ou ter soluções excelentes para eles, mas péssimas para nós.
Em situações como essas e outras precisamos de ajuda. Que bom seria encontrar um amigo disposto a ouvir, que não nos interrompesse para mostrar que suas feridas são maiores que as nossas, que nosso sofrimento é nada diante da desgraça do mundo. Um amigo capaz de acolher e ouvir, sem de imediato dizer que estamos errados, que a vida não é assim, que sonhamos demais, que pensamos demais, que escolhemos demais, que trabalhamos demais, que somos demasiadamente tortos, rudes, loucos, insanos, insensatos, insensíveis; que falta-nos vontade, razão, sensibilidade, exatidão, loucura também; que estamos errados, que somos mesquinhos, que o caminho certo é outro... Tantos e quantos julgamentos e observações que recebemos e nada, nada adianta para tirar-nos de nosso poço interminável de sofrimento.
Pessoas em situações como essas têm procurado ajuda nos consultórios de Filosofia Clínica. Ajuda-ao-outro: essa é a tarefa da atividade intitulada Filosofia Clínica. Entre as atividades de ajuda-ao-outro, a Filosofia Clínica destaca-se por não trabalhar com teorias prévias, tipologias ou conceitos de normalidade. O homem é a medida de todas as coisas, e como medida, aquele que procura ajuda é quem determina de que maneira poderá ser auxiliado. Pensar junto com o outro é o mote do filósofo clínico, norteado pelo respeito a seus modos de ser, a suas escolhas.
O que busca ajuda é chamado partilhante porque é aquele que partilha, que toma parte em, que participa ativamente de todo o processo clínico, compartilhando sua vida e suas questões com o filósofo clínico. Por sua vez, o filósofo clínico acolherá o partilhante e suas questões e partilhará com ele o conhecimento produzido pela filosofia, auxiliando-o a refletir sobre suas questões e dificuldades, a levantar e estudar possibilidades, a definir, construir e percorrer caminhos. Não se trata de teorizar sobre o sofrimento alheio, mas de auxiliar o outro a lidar com suas questões, diante das circunstâncias e possibilidades existentes.
A idéia de colocar a reflexão filosófica a serviço da atividade de ajuda-ao-outro não é novidade. Desde os primeiros momentos, a filosofia cumpre o papel de refletir sobre as questões cotidianas, de pensar a vida, a existência e a natureza para aperfeiçoá-las e gerar benefícios à humanidade. Desde os primórdios, cumpre o papel de cuidar da alma (Platão, 2002), buscando, a partir da reflexão, o equilíbrio interno entre ser, pensar e agir; o desenvolvimento da virtude da alma e a conseqüente saúde integral – alma, corpo, sociedade e natureza.
Na década de 80, o papel terapêutico da filosofia é resgatado por um movimento denominado filosofia prática (Achenbach, 1989), com vistas à construção de uma atividade de ajuda-ao-outro, partindo do questionamento: se a psiquiatria e a psicologia utilizam a filosofia em seus métodos, por que um filósofo não poderia utilizar a metodologia própria da filosofia para ajudar as pessoas em suas questões cotidianas? O filósofo assume a função de cuidador, investido do conhecimento produzido em toda a história da filosofia. “De fato, o primeiro ‘consultório de filosofia’ foi aberto na Alemanha em 1981 e, ao que parece, existe hoje uma centena deles no mundo” (Sautet, 1999). Nomes como Gerd B. Achenbach (1989), Marc Sautet (1999) e Lou Marinof (2001) são mundialmente conhecidos por desenvolverem, de maneiras diferentes, a atividade de cuidadores, fundamentados na filosofia.
Achenbach propôs um método de entrevistas particulares ao longo das quais a filosofia recuperou seu direito de cidadania. Condição sine qua non: não sobrecarregar o discurso de conceitos inacessíveis aos comuns mortais e não desprezar o bom senso; deixar surgir a experiência pessoal, até favorecendo sua evocação, e incentivar o ‘cliente’ a se aventurar por terras desconhecidas, utilizando ao máximo a linguagem que lhe é familiar. O que equivale a dizer que, nessas entrevistas, o filósofo escuta mais do que fala e só introduz referências para fazer seu interlocutor progredir em seu próprio ritmo. (Sautet, 1999, p. 59)
No Brasil, o filósofo gaúcho Lúcio Packter (1997), inspirado na filosofia prática, criou um instrumental específico, próprio, adequado à realidade brasileira, diferente dos trabalhos dos filósofos já citados. Packter apropria-se do conhecimento filosófico de maneira seletiva, e utiliza-o para a atividade de ajuda-ao-outro, desenvolvendo o trabalho que nomeou Filosofia Clínica.
Após conhecer o trabalho de aconselhamento filosófico desenvolvido na Holanda, em Amsterdã, completamente diferente do que viria a criar mais tarde, Packter começou a pensar na possibilidade de uma clínica filosófica. De volta ao Brasil, ainda na década de 80, iniciou suas pesquisas em Santa Catarina, coletando dados, entrevistando pessoas, pesquisando, nos textos de filosofia, as possibilidades para auxiliá-las. Entre erros e acertos, uniu os dados dos relatos coletados aos estudos dos textos filosóficos, encontrando formas para compreender e auxiliar as pessoas. Depois de muitos testes, pesquisas teóricas e práticas, organizou um instrumental flexível, possível de ser adaptado às necessidades de diferentes pessoas, mas que possui um grau de segurança capaz de fornecer informações suficientes para o filósofo clínico auxiliar as pessoas sem direcionar suas vidas e escolhas.
Respeito à singularidade, ao modo de ser, agir e pensar do partilhante é a característica essencial desse trabalho, que surge para atender as necessidades existenciais criadas e desenvolvidas pelo ser humano no decorrer de sua história. Diante das crises contemporâneas, da insuficiência de respostas, das carências humanas e existenciais cada vez mais presentes e significativas, a Filosofia Clínica coloca-se como um novo paradigma, tentando conciliar a tarefa do filosofar com a possibilidade de ajuda-ao-outro, construindo uma terapêutica centrada na singularidade, no respeito ao universo e ao modo de ser de cada partilhante. O filósofo clínico é um profissional apto a pensar junto com a pessoa, sem interferir em suas decisões, auxiliando-a a refletir sobre si mesma e sobre o mundo que a rodeia, sobre opções e possibilidades para lidar com as questões cotidianas, respeitando seus valores, sentimentos, necessidades e escolhas.
Não se trata de um mero aconselhamento pautado em referenciais filosóficos, colocando em risco a vida das pessoas. Há uma série de procedimentos clínicos, estruturados de modo a permitir a identificação de sinais e sintomas que indiquem a necessidade de um trabalho interdisplinar, pois apesar de ser a mãe das ciências, a filosofia admite os limites e as especificidades de cada área do conhecimento e, por isso, o filósofo clínico não se habilita a trabalhar todo e qualquer problema. Há problemas de ordem orgânica, química, que precisam ser tratados com medicamentos. Há situações em que o instrumental da Filosofia Clínica não possui elementos adequados para o trabalho. Conferidas essas possibilidades, o filósofo clínico encaminha – mesmo que por precaução, para mera exclusão de possibilidades, ou ainda para um trabalho interdisciplinar – o partilhante para um profissional competente naquela área de atuação.
Quem é esse outro que procura o auxílio do filósofo clínico? A princípio não há como saber. Em que é possível ajudá-lo? O que ele busca? O que lhe aflige? Diante das inúmeras possibilidades de resposta, não há como responder previamente a nenhuma questão. O primeiro passo é tomar parte, partilhar as questões, o universo, os modos de ser, estar, pensar e agir do partilhante. O ponto de partida é o sei que nada sei, de tudo quanto sei socrático. Como o filósofo clínico nada sabe sobre aquele que o procura, sua postura diante do outro é de busca desse conhecer e, para tal, deve permitir o mostrar-se do partilhante.
Como cada partilhante é um universo a ser conhecido, o filósofo clínico acolhe esse universo com a escuta atenta, suspendendo seus juízos prévios, suas próprias concepções de mundo, seu próprio universo, para aproximar-se ao máximo do universo do partilhante, assumindo a postura do amigo que acolhe, ouve, mas não julga, não interpreta ou avalia, apenas contextualiza, tentando compreender a gênese da situação, o que se passa e como auxiliá-lo em suas necessidades.
Gadamer (1997) mostra-nos que para compreender um texto é preciso deixar que ele diga alguma coisa por si, posicionar-se de maneira receptiva a sua alteridade, o que não significa neutralidade ou auto-anulamento. A abertura para o outro não supõe uma dissolução de si mesmo, um deixar-se absorver, mas um conhecimento daquilo que se é, de suas próprias opiniões prévias e preconceitos. Quanto maior a consciência de seus referenciais, maior a possibilidade de estabelecer a alteridade, de enxergar o outro tal qual se apresenta, sem se permitir ser guiado por pré-juízos, mas sem ser absorvido pelo outro.
Para possibilitar essa abertura para o outro na clínica, durante o processo de formação, o filósofo clínico submete-se a um procedimento denominado Clínica Didática ou Pré-Estágio. Esse procedimento consiste em passar por todo o processo clínico como um partilhante, ou seja, submeter-se à clínica, com o objetivo múltiplo de conhecer seus referenciais, suas concepções prévias, seus pré-juízos, de conhecer a si mesmo a partir do instrumental filosófico-clínico e, principalmente, de vivenciar esse instrumental, para avaliar, a partir da própria vivência, as possibilidades e resultados de todo o processo. Esse procedimento é também denominado Pré-Estágio por ser requisito prévio para iniciar os estágios – atendimentos supervisionados, também necessários à formação. Após o processo de formação, a manutenção da clínica é uma necessidade, não apenas como atualização da consciência desses referenciais, mas como profilaxia para o profissional.
A princípio, a postura do filósofo clínico é de escuta atenta. Ouvir interferindo o mínimo possível, acolhendo, acompanhando atentamente. Não se trata da postura neutra de um cientista que observa uma experiência provocada e controlada externamente. A simples presença é uma interferência, o encaminhamento dos procedimentos, mais ainda. Há interação, encontro desses universos como conjuntos que estabelecem interseções. Há atenção e cuidado que se fazem explícitos no decorrer dos trabalhos.
Dentro das especificidades filosófico-clínicas, há exames iniciais que permitem um conhecimento das questões, do universo, do modo de ser, estar, pensar e agir, das necessidades do partilhante. Esse instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três eixos centrais: Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos.
Os Exames Categoriais[2] são exames iniciais, consistem em conhecer o universo no qual o partilhante está inserido: seu contexto social, político, econômico, cultural, educacional, familiar, suas relações, como lida com o tempo, com o próprio corpo, com o ambiente, com suas idéias, onde mora, em que trabalha, o que estuda, o que viveu, etc.
A Estrutura de Pensamento fornece o modo como essa pessoa se estruturou a partir das vivências de seu universo. São trinta tópicos[3] que abordam esse modo de ser, considerando desde sua visão de mundo, até suas emoções, sua expressividade, seus valores, a religiosidade, seus papéis existenciais, seus meios de expressão. Não se trata de uma abordagem puramente racional, a Estrutura de Pensamento é muito mais ampla, abrangendo o modo de ser em devir e em múltiplas dimensões de cada partilhante em especial. A divisão em tantos tópicos pode sugerir a idéia de um processo exaustivo de análise em detrimento da síntese. Mas não é esse o procedimento. A síntese é o objetivo, considerando uma leitura da determinância dos tópicos, das relações intra e inter tópicos, o todo é maior do que as partes; o partilhante, em seu universo, é o todo.
Os Submodos[4] – intervenções clínicas, dividem-se em dois momentos: a observação dos Submodos Informais e sua utilização como procedimentos clínicos. Como Submodos Informais são verificadas, no partilhante, as maneiras habituais de lidar com suas questões. Nessas maneiras o filósofo clínico observa: pertinência, relevância, eficácia e aplicabilidade a outras situações. Como procedimentos clínicos, os Submodos são maneiras, modos subordinados à Estrutura de Pensamento, aos Exames Categoriais e aos Submodos Informais, isto é, só fazem sentido e somente podem ser utilizados se estiverem de acordo com o que foi estudado e observado anteriormente nos outros eixos, em outras palavras, se forem pertinentes às condições, às necessidades e ao modo de ser do partilhante.
Para o estudo e observação desses três eixos fundamentais, o filósofo clínico utiliza a história de vida do partilhante. Considerando que o ser humano se constrói, torna-se o que é, a partir de suas vivências, a história do partilhante, contada por ele mesmo, oferecerá dados acerca de seu universo, da gênese de suas questões, de seus modos de ser e de agir.
O partilhante chega ao consultório para uma primeira consulta. A conversa inicial é sobre o Assunto Imediato, ou seja, a queixa, o que incomoda, o que moveu o partilhante a procurar ajuda. A queixa inicial pode ser apenas a ponta de um iceberg, não ser a questão que necessitará ser trabalhada, mas merece acolhimento, atenção, além de servir como um modo de aproximação, como forma de estabelecer a Interseção. O filósofo clínico poderá perguntar sobre o contexto da questão apresentada, pedir mais detalhes, para compreender o que se passa. A seguir, explicará ao partilhante os procedimentos clínicos, com mais ou menos detalhes, de acordo com o interesse do mesmo.
O conceito de Interseção, em Filosofia Clínica, tem sua origem na Teoria dos Conjuntos (Cantor), onde a interseção entre conjuntos equivale aos elementos comuns entre eles. Em clínica, filósofo clínico e partilhante são os universos, os conjuntos, em interseção. A Interseção não é medida pela quantidade de elementos comuns, mas pela qualidade estabelecida na relação. Relação esta que se estabelece tanto por dados verbais como por dados não verbais: gestos, olhares, expressões, posturas, etc. Apesar de iniciada no primeiro contato, uma Interseção é construída a cada consulta, podendo tornar-se mais ou menos consistente no decorrer dos trabalhos, e definir-se como: positiva – subjetivamente boa para ambos; negativa – subjetivamente ruim; confusa – as pessoas envolvidas não sabem determinar o que vivenciam; ou indefinida – oscila com freqüência, impedindo uma definição.
Após a conversa sobre o Assunto Imediato, o partilhante preencherá uma ficha clínica que contém dados sobre o partilhante, termo de esclarecimento e consentimento para o trabalho clínico. Caso trate-se de um partilhante que se encontre em acompanhamento psiquiátrico ou neurológico, o filósofo clínico informará sobre a necessidade de um trabalho interdisciplinar e entrará em contato com o médico responsável para estabelecer a interdisciplinaridade.
O próximo passo consiste em colher o histórico do partilhante, contado por ele mesmo, cronologicamente e em detalhes. Esse histórico servirá de fonte para a obtenção de dados sobre os três eixos fundamentais: Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos. Enquanto o partilhante conta sua história, o filósofo clínico limita-se a interferências mínimas, apenas para permitir a Interseção, pedindo continuidade, levando a pessoa a retomar o curso de sua história em caso de saltos lógicos ou temporais. Essas interferências mínimas são denominadas Agendamentos Mínimos. Cabe ao filósofo clínico controlar sua curiosidade, suspender seus pré-juízos, a fim de evitar distorções, interpretações equivocadas, mal entendidos. Por esse motivo, a postura adequada é calar, ouvir e contextualizar o histórico do partilhante, lendo-o a partir do instrumental filosófico-clínico.
Obviamente, dificuldades nesse contar a história podem surgir: o partilhante pode considerar irrelevante falar sobre sua história de vida quando seu sofrimento encontra-se no momento presente, não se sentir à vontade para expor dados e detalhes de suas vivências, ter passado por experiências traumáticas e não querer revivê-las, entre outras possibilidades. Nessas situações, cabe ao filósofo clínico ouvir, acolher, mostrar a necessidade dos dados para um subseqüente trabalho, explicitar que não se tratam de lembranças traumáticas, mas de todas as vivências, contextos e dados do cotidiano.
Se o partilhante tiver dificuldade em contar um período de sua história, pode-se deixá-lo para depois, afinal, nos primeiros momentos da clínica, o filósofo clínico é um estranho para o qual o partilhante deve contar dados que muitas vezes são difíceis de expor, pode faltar confiança, pode ter medo de ser julgado, pode sofrer com as lembranças. O filósofo clínico compreende essas e outras dificuldades, por isso permitirá flexibilidade para que o partilhante conte sua história, entendendo que ele poderá, inicialmente, omitir dados, distorcê-los, mentir, inventar, entre outras coisas. Ainda assim, os dados inventados, distorcidos, o são a partir de referenciais do partilhante. Sua Estrutura de Pensamento desvenda-se ainda que o histórico contenha distorções. Além disso, na medida em que a Interseção se estabelece e que os outros procedimentos clínicos são efetivados, novos dados surgem, outros são corrigidos. Os procedimentos seguintes: Divisão e Enraizamentos, auxiliam nesse processo.
Há casos em que a dificuldade consiste em falar. A pessoa não consegue contar a história. Nesses casos, o filósofo clínico pesquisará se o partilhante possui outros dados de Semiose – veículos de expressão como fotos, textos, poemas, pintura, música, desenhos, gestos, expressões faciais, posturas corporais, enfim, instrumentos que auxiliem nesse processo. Esses instrumentos podem ser utilizados não apenas em casos de dificuldades, mas sempre que existirem e puderem propiciar acesso a dados não oferecidos pela fala. Esses dados serão contextualizados na história do partilhante e significados por ele.
Chegando ao momento presente, o filósofo clínico dividirá o histórico do partilhante em partes, pedindo que reconte, parte a parte, com mais detalhes, novos dados. Há casos em que o partilhante corrige: “Da outra vez contei que isso havia ocorrido assim, mas não foi bem assim. Depois lembrei melhor, o que ocorreu foi o seguinte:...”, ou ainda: “Quando contei na outra consulta, eu realmente pensava que ele não me amava, mas depois que lhe contei, fiquei pensando em nosso cotidiano, em tudo o que fez por mim... isso é amor, ele me amou, e muito.” , em outras situações: “Na primeira consulta, fiquei com vergonha de lhe contar, não sabia o que pensaria a respeito, como julgaria. Agora já tenho confiança, posso contar e sei que você não vai me recriminar por isso...” . Falas como essas são muito comuns em clínica.
A Divisão não serve apenas para essas correções, mas principalmente para a aquisição de mais dados, pois ao contar a história, o partilhante poderá optar por uma linha de raciocínio, deixando de lado muitos outros elementos vividos. O procedimento divisório é repetido inúmeras vezes, até que não surjam novos dados.
Terminada a Divisão é o momento dos Enraizamentos. Trata-se de um processo epistemológico para pesquisar o conteúdo de termos, estabelecer relações, testar hipóteses clínicas. Nesse momento são feitas perguntas específicas sobre dados colhidos no histórico do partilhante. Até esse momento o filósofo clínico somente acompanhou a história, mantendo o partilhante no curso dela; dividiu-a em períodos determinados pelos dados colhidos no histórico e pediu que recontasse cada período. Neste momento, todas as dúvidas relativas ao histórico, questões ou termos que não estejam claros e que possuam pertinência clínica, ou seja, estejam vinculados às questões do partilhante, poderão ser esclarecidos.
Enquanto encaminha esses procedimentos, o filósofo clínico observará os três eixos fundamentais: Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos Informais, atualizando os dados a cada consulta. Com dados suficientes para compreender o universo do partilhante: seu modo de ser – considerando que esse modo de ser dá-se em devir, ou seja, está em constante movimento e, portanto, precisa de constante atualização; suas maneiras de responder às situações; localizado o Assunto Último, isto é, a questão a ser trabalhada, de fato, em clínica, o filósofo clínico preparará um Planejamento Clínico, analisando possíveis maneiras de auxiliar o partilhante. Esse planejamento inclui a leitura do todo da Estrutura de Pensamento: se há choques intra ou inter tópicos, quais são os tópicos determinantes, os permeáveis, os flexíveis, os estruturais; quais as possibilidades para trabalhar os choques; que modificações são possíveis e necessárias ao partilhante e quais as suas conseqüências. Juntamente a um conhecimento acerca dos contextos e das possibilidades concretas existentes nesses contextos.
O conhecimento da linguagem usual desse partilhante também é imprescindível, visto que partimos da premissa de Wittgenstein (1975) que a linguagem é um jogo e o significado das palavras está em seu uso. O filósofo clínico, durante a colheita de dados, pesquisa o jogo de linguagem do partilhante, e utiliza, para os procedimentos clínicos, esse mesmo jogo, para que as palavras tenham um significado unívoco, para que os objetivos clínicos não se percam numa linguagem incompreensível ao partilhante.
Considerando que o partilhante não para sua vida durante os procedimentos clínicos, faz-se necessária, a cada consulta, uma atualização, pois eventos, fatos ocorridos entre uma consulta e outra, podem modificar dados extremamente significativos, invalidando o uso de alguns Submodos, ou ainda, modificando significados de questões ou relações. Assim, os primeiros momentos da consulta são destinados a essa atualização, onde o filósofo clínico pergunta sobre a semana, sobre como estão as coisas. Em alguns casos essas perguntas geram um processo de Esteticidade – explosão, catarse. Nesses casos, o filósofo clínico permite esse processo, deixando o partilhante desabafar sobre o fato ou situação que o incomoda. Há casos em que a necessidade de tal desabafo é tamanha que uma consulta é insuficiente para tal. Mas o filósofo clínico deve cuidar para que as consultas não se tornem constantes esteticidades, o que impediria a colheita de dados para o trabalho.
Uma vez organizado o Planejamento Clínico, o passo seguinte é a aplicação de Submodos. Esses procedimentos, totalmente subordinados aos Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos Informais, são aplicados e é acompanhado o resultado. Há casos em que o resultado é imediato, mas essa não é a regra. Em geral, faz-se necessário o acompanhamento por um período, variável de acordo com a complexidade das questões e as possibilidades clínicas do partilhante, até que a pessoa alcance o bem-estar subjetivo.
Entende-se aqui bem-estar subjetivo por bem-estar para o partilhante. Se ele sentir-se bem com os resultados da clínica, o objetivo foi atingido. Parte-se então, para o término do processo, que assim como todo o seu decorrer, dependerá do partilhante. Há pessoas que, atingindo esse ponto agradecem e despendem-se, há outras que precisam trabalhar esse término, tornando as consultas esparsas, outros necessitam que o filósofo clínico informe o término do trabalho. Isso também será encaminhado de acordo com os dados pesquisados.
Os procedimentos aqui descritos são flexíveis, adaptáveis às necessidades de cada partilhante. Não existem, em Filosofia Clínica, procedimentos clínicos pré-determinados, aplicáveis a quaisquer casos, ou a determinados tipos. Apesar de termos uma lista com 32 Submodos, esses são mesclados, formando muitos outros. Não se trata de um processo de construção de tipos: para perfis “x”, Submodos “y”. Os procedimentos são exclusivos para cada partilhante, criados para cada caso em especial. Cada partilhante é um novo caso, um novo universo, que necessitará de novos procedimentos, criados para atender às suas necessidades.
Diante da exposição desse instrumental o leitor deve estar se perguntando: onde está a filosofia em tudo isso?
Em primeiro lugar na postura do filósofo clínico, que se dispõe a pensar junto com o partilhante, que usa o conhecimento em benefício do humano, que se posiciona como um constante pesquisador, em busca incessante de ampliação de seu conhecimento sobre as questões da vida, utilizando-o para o cuidado do outro.
Em segundo, toda metodologia utilizada na Filosofia Clínica é construída a partir de métodos filosóficos: Histórico, quando considera que o partilhante se constrói a partir de sua história e toma-a como ponto de partida para os exames iniciais; Fenomenológico, assumindo a postura de suspensão de juízos, considerando os dados literalmente, conforme são descritos pelo partilhante, atendo-se a Agendamentos Mínimos nos momentos iniciais da clínica; Empírico, quando considera a necessidade do conhecimento do universo circunstancial do partilhante para levantar hipóteses realizáveis na realidade existente, quando valoriza dados sensoriais como fonte do conhecimento; Lógico e Analítico, ao dedicar-se ao estudo e pesquisa dos significados e das estruturas da linguagem do partilhante, analisando-a não apenas sob o aspecto lógico formal, como também acerca das possíveis análises estruturais, sintáticas e semânticas; Epistemológico, pesquisando a gênese das questões, dos processos de construção de conhecimento atuais e possíveis, disponíveis ao partilhante.
Mas como é possível unir metodologias tão distantes como, por exemplo, Fenomenologia e Filosofia Analítica? É feito um recorte epistemológico que tem como critério fundamental as necessidades clínicas, tal recorte apresenta possíveis poros para o estabelecimento de interseções, aproximando diferentes metodologias.
Além disso, cada Categoria, Tópico da Estrutura de Pensamento e Submodo tem sua fundamentação em um filósofo ou escola filosófica, ou seja, todo o instrumental, considerando-se postura, metodologias, Categorias, Tópicos e Submodos, possui fundamentação na filosofia acadêmica.
Não se trata de priorizar uma escola filosófica em detrimento da outra, mas de possibilitar a interseção entre elas, selecionando o que for necessário ao partilhante. Não são as preferências do filósofo clínico que contam para a construção do trabalho, mas as necessidades do partilhante. Assim, não há filósofos clínicos com orientação kantiana, existencialista, aristotélica, platônica, humeana, schopenhaueriana, nietzscheniana, etc. Há um instrumental construído com a contribuição de inúmeros pensadores. O que desse instrumental será utilizado em cada caso, depende do que for encontrado na pesquisa dos Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos Informais de cada partilhante.
Assim, independentemente do filósofo clínico identificar-se com um autor, com um Tópico ou com um Submodo, o trabalho será direcionado pelo partilhante, não pela identificação deste com uma ou outra escola filosófica, mas pelo que apresenta em seu contexto, em seus modos de ser.
Também não é o caso de discutir textos filosóficos com o partilhante, exceto se esse for um dado constante em sua Estrutura de Pensamento. Os textos filosóficos servem de fundamentação ao trabalho do filósofo clínico. As questões do partilhante serão discutidas dentro de seu jogo de linguagem, ou seja, utilizando termos compreensíveis e adequados a sua construção lingüística.
Por sua constituição, por ter como objetivo principal o bem-estar subjetivo do partilhante, sem desconsiderar que ele está inserido em um universo concreto, coexistindo com outros e, portanto, é responsável por suas escolhas e ações, assim como por suas conseqüências no todo desse universo; por não partir de um conceito de normalidade pré-determinado, por um padrão pré-estabelecido, por fundamentar-se, principalmente, no respeito ao outro, a Filosofia Clínica é uma atividade essencialmente Ética.
O conceito de normalidade, conforme demonstrado por Foucault (1994,1998, 2000), varia de acordo com a época, a cultura, os interesses sociais. Assim sendo, o que é considerado patológico numa determinada sociedade pode ser virtuoso em outra, o que foi considerado anormal em outra época pode ser, não somente aceitável como recomendável hoje. Muitos dos que foram considerados loucos em suas épocas, perseguidos, excluídos, hoje são tidos como gênios, grandes mestres. Assim, se o filósofo clínico assume, de fato, a máxima socrática sei que nada sei, se assume a postura filosófica daquele que busca constantemente o conhecimento, e não o do que detém o saber, visto ser impossível a nossos limites de humanidade detê-lo, não assumirá a postura daquele que impõe verdades ao outro, daquele que detém o saber e portanto indica o caminho certo, o caminho do bem.
Será sim, aquele que questiona, que interroga, que provoca o pensar. Mas também o que acolhe e que, principalmente, compreende que existem diferentes modos de ser. Que um modo de ser não é, em si, melhor ou pior que outro. Que um modo de ser pode ser mais adequado a um determinado contexto, pode ter sido estabelecido momentaneamente como uma necessidade, mas, principalmente, que a escolha por um modo de ser no mundo cabe a cada um de nós, e que essa escolha traz consigo uma cadeia de conseqüências, que serão vividas por aquele que escolheu e pelos que o circundam, e, portanto, cabe ao partilhante a decisão, sem eximir-se de sua responsabilidade diante de si mesmo e dos outros.
Considerando a Ética como uma atividade reflexiva e não normativa, que não supõe regras fixas e sim flexíveis, adequadas a cada situação em especial, que compreende o todo dos elementos envolvidos na situação, a aproximação entre Filosofia Clínica e Ética dá-se porque ambas necessitam dessa flexibilidade, dessa compreensão do todo e da inter-relação entre os elementos que o compõe, porque ambas são essencialmente reflexivas e, principalmente, porque é exigida do filósofo clínico a atitude ética diante do partilhante[5].
Em hipótese alguma o filósofo clínico pode direcionar as ações do partilhante fundamentado em valores ou escolhas pessoais. É inaceitável que desenvolva uma relação de dependência, tornando-se um orientador constante do partilhante, permitindo a atrofia de sua autonomia. Que se necessite de ajuda em situações difíceis é compreensível, mas que se mantenha a ajuda por toda a vida, inaceitável.
Caso encontre uma situação em que auxiliar o partilhante implique em afrontar seu próprio modo de ser, seus valores, a ponto de inviabilizar o trabalho, é indicado ao filósofo clínico encaminhar o partilhante a outro profissional, pois a relação filósofo clínico-partilhante não exige a abdicação de seu modo de ser, mas impede a imposição de um modo de ser ao outro. Pode-se questionar, pensar junto, avaliar possibilidades, mas nunca direcionar a vida do partilhante para caminhos que não sejam escolhidos por ele.
Respeito ao outro e a seus modos de ser, a suas escolhas. Ajuda ao outro, em Filosofia Clínica, não é sinônimo de oferecer um universo pronto a esse outro, e que não lhe pertence, transformando-o num outro eu, mas respeitar o seu universo, dispor-se a conhecê-lo e oferecer-lhe ajuda dentro das possibilidades encontradas nesse universo, ajudá-lo a acomodar, a transformar, a modificar, a aceitar, a transmutar, a conviver... ao que for a sua escolha, diante de suas necessidades e possibilidades.
Referências Bibliográficas
ACHENBACH, Gerd B. Kurzgefaßte Beantwortung der Frage: Was ist Philosophische
Praxis? cf. artigo "Praxis, Philosophische" por Odo Marquardt in "Historisches Wörterbuch der Philosophie", editado por Joachim Ritter et. al., Vol. VII, Basel 1989, pp. 1307f. http://www.igpp.org/index.htm acesso em 14 de novembro de 2004.
AIUB, Monica. Para entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do Filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
_____. Historia de la Locura en la Epoca Clásica. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
_____. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.
GADAMER, Hans-George. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. São Paulo: Vozes, 1994.
MARINOF, Lou. Mais Platão, menos prozac. Rio de Janeiro: Record, 2001.
NUNES R.G.; PEDROSA, R. Dicionário de Filosofia Clínica. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2000.
PACKTER, Lúcio. Filosofia Clínica: propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997.
_____. Cadernos de Filosofia Clínica. Porto Alegre: Instituto Packter, s/d.
PAULO Margarida Nichele. Compêndio de Filosofia Clínica. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2001.
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PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2002.
SAUTET, Marc. Um Café para Sócrates: como a filosofia pode ajudar a compreender o mundo de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
[1] Artigo Publicado na Revista Cadernos do Centro Universitário São Camilo. São Paulo. V. 11 n. 1 p. 113-121. Jan-mar2005.
[2] Categorias: Assunto Imediato e Último; Circunstância, Lugar, Tempo e Relação.
[3] Estrutura de Pensamento: 1. Como o Mundo Parece; 2. O Que Acha de Si Mesmo; 3. Sensorial e Abstrato; 4. Emoções; 5. Pré-Juízos; 6. Termos Agendados no Intelecto; 7. Termos: Universal, Particular e Singular; 8. Termos: Unívoco e Equívoco; 9. Discurso: Completo e Incompleto; 10. Estruturação de Raciocínio; 11. Busca; 12. Paixões Dominantes; 13. Comportamento e Função; 14. Espacialidade: Inversão, Recíproca de Inversão, Deslocamento Curto e Deslocamento Longo; 15. Semiose; 16. Significado; 17. Armadilha Conceitual; 18. Axiologia; 19. Tópico de Singularidade Existencial; 20. Epistemologia; 21. Expressividade; 22. Papel Existencial; 23. Ação; 24. Hipótese; 25. Experimentação; 26. Princípios de Verdade; 27. Análise da Estrutura; 28. Interseções entre Estruturas de Pensamento; 29. Matemática Simbólica; 30. Autogenia.
[4] Submodos: 1. Em Direção ao Termo Singular; 2. Em Direção ao Termo Universal; 3. Em Direção às Sensações; 4. Em Direção às Idéias Complexas; 5. Esquema Resolutivo; 6. Em Direção ao Desfecho; 7. Inversão; 8. Recíproca de Inversão; 9. Divisão; 10. Argumentação Derivada; 11. Atalho; 12. Busca; 13. Deslocamento Curto; 14. Deslocamento Longo; 15. Adição; 16. Roteirizar; 17. Percepcionar; 18. Esteticidade; 19. Esteticidade Seletiva; 20. Tradução; 21. Informação Dirigida; 22. Vice-Conceito; 23. Intuição; 24. Retroação; 25. Intencionalidade Dirigida; 26. Axiologia; 27. Autogenia; 28. Epistemologia; 29. Reconstrução; 30. Análise Indireta; 31. Expressividade; 32. Princípios de Verdade.
[5] Conforme Código de Ética do Filósofo Clínico, disponível em http://www.filosofiaclinica.com.br, acesso em 15 nov. 04.
O QUE É FILOSOFIA CLÍNICA
Desde suas origens, a filosofia tem como objetivo o benefício humano. No decorrer de nossa história, as questões filosóficas recebem um tratamento específico, que se caracteriza por um olhar, por uma postura investigativa, questionadora e crítica diante da realidade. Um olhar dirigido às nossas crenças, às justificativas de nossos modos de existência, aos motivos de nossas escolhas e nossos posicionamentos diante de nós mesmos, do mundo e dos outros.
A Filosofia Clínica consiste na reflexão filosófica acerca das questões que nos incomodam em nossas existências singulares. Retomando a necessidade do diálogo, tão ausente na sociedade contemporânea, essa atividade propõe-se a pensar junto, em disponibilizar-se a refletir sobre a própria existência e possíveis maneiras de torná-la subjetivamente melhor.
Tendo como objetivo clínico o “bem estar subjetivo” do partilhante – aquele que procura auxílio na clínica filosófica –, o filósofo clínico não parte de abordagens ou respostas prévias, mas inicia seu trabalho com uma pesquisa sobre os modos de ser próprios do partilhante. Cada pessoa é única e não há um modo de ser absolutamente melhor do que o outro; cada contexto é único e não há respostas que sirvam a todos os contextos. Desta forma, o filósofo clínico, após ter pesquisado os modos de ser, de agir e os contextos de seu partilhante, o auxiliará, tanto quanto possível, a lidar com suas questões, provocando, na clínica, o exercício da reflexão filosófica.
A Filosofia no Consultório *
Há situações na vida que nos desestabilizam, que nos provocam de modo tal que parecem “retirar nosso chão”. Não sabemos mais quem somos, como agir, o que fazer. Nesses momentos, sentimo-nos como se nossa autonomia, nossa capacidade de decisão e escolha nos fosse retirada. Alguns, nesses momentos, desesperam-se; outros buscam respostas prontas, nem sempre adequadas à sua situação.
Em situações como essas e outras, algumas vezes precisamos de ajuda. Mas que tipo de ajuda? Talvez um amigo que nos ouvisse, sem nos interromper para mostrar que suas feridas são maiores que as nossas; um amigo capaz de acolher e ouvir, sem de imediato dizer que estamos errados, que a vida não é assim, que sonhamos demais, que pensamos demais, que escolhemos demais, que trabalhamos demais, que somos demasiadamente tortos, rudes, loucos, insanos, insensatos, insensíveis; que falta-nos vontade, razão, sensibilidade, exatidão, loucura também; que estamos errados, que somos egoístas, que o caminho certo é outro... Julgamentos e observações que recebemos, mas que ao invés de nos ajudarem, nos provocam mais sofrimento.
Pessoas em situações como essas têm procurado ajuda nos consultórios de Filosofia Clínica. Essas pessoas buscam re-encontrar sua autonomia, organizar suas idéias para que possam pensar, avaliar as situações por si mesmas e, a partir disso, orientar suas decisões, escolhas, ações e posicionamentos. Procuram no filósofo clínico esse ouvinte atento, com abertura suficiente para não julgar, com disposição para provocar o pensar sem aconselhar, sem apresentar respostas prontas. Alguém com quem se possa pensar junto.
Num primeiro momento, pode parecer contraditório pensar em filosofia e clínica, juntas numa única atividade. Se considerarmos a filosofia exclusivamente como um sistema, certamente concordaremos que ela pouco pode auxiliar as pessoas em suas questões cotidianas, afinal, como a Idéia platônica ou o Cogito cartesiano poderiam ser terapêuticos? Além disso, em toda a longa história da filosofia há sistemas que, quando contrapostos, mostram-se contraditórios. Como escolher um sistema que seja adequado a uma pessoa? Não se trata de escolher entre os diferentes sistemas filosóficos, um que possa oferecer soluções, respostas à pessoa. A filosofia não oferece soluções ou respostas prontas.
Por que filosofia?
Ao propormos a filosofia clínica como uma terapia, consideramos a filosofia muito mais como uma atitude, uma postura diante da vida. As questões surgem do cotidiano e vamos enfrentá-las utilizando todo o instrumental metodológico construído nos mais de 25 séculos de sua existência. Das lógicas à metafísica; da epistemologia à filosofia política; da ética à estética; dos Pré-Socráticos aos contemporâneos...
Se procurarmos o verbete Filosofia nos dicionários especializados, encontraremos diferentes definições, cada qual construída a partir das necessidades de seu tempo, e com elementos presentes numa determinada cultura. Conhecer profundamente as diferentes definições de filosofia, repeti-las e citá-las não nos tornam filósofos. É preciso que se exercite a filosofia em atitude, recriando-a a partir de nosso próprio tempo, de nossa cultura, de nossa realidade.
Em comum às várias definições de filosofia há um elemento: a filosofia como busca de um saber em benefício do ser humano. A relação entre filosofia e vida é, desde as origens, imprescindível. O olhar próprio da filosofia exige que se questione o que parece óbvio, que se pense em possibilidades, que se recorte, articule e sobreponha os elementos, construindo conceitos a partir de nosso plano de realidade[1]. Por isso, a idéia de colocar a reflexão filosófica a serviço da atividade de ajuda-ao-outro não é novidade.
Na Antiguidade, a concepção de universo como cosmos, como ordenação, permitia que se buscasse uma ordem universal à qual o indivíduo se harmonizaria, promovendo assim, a saúde – que era sinônimo de equilíbrio integral entre mente, corpo, sociedade e natureza. A doença era sinal de um desequilíbrio que necessitava ser restaurado. A função do filósofo era buscar o conhecimento e, com ele, restaurar o equilíbrio. Conhecer para cuidar.
No século XX, passadas as Revoluções Científicas ocorridas na Modernidade, propostas as teorias da relatividade e do quantum, questionados os princípios da lógica-clássica passando a considerar-se a contradição, a complexidade, os vários planos de realidade, o terceiro incluído, não é mais possível pensar no universo como cosmos, sendo mais apropriado concebê-lo como caos. Contudo, o conceito de saúde como equilíbrio, presente na Antiguidade e substituído na Modernidade pelo conceito de “ausência de doença”, é resgatado, buscando-se novamente a saúde como equilíbrio. A OMS (Organização Mundial da Saúde) define como saúde o “completo bem-estar bio-psico-social”.
Na Antiguidade esse equilíbrio era pautado pela ordem do cosmos, e hoje, como nos equilibrar diante de um universo caótico? É preciso construir esse equilíbrio considerando as constantes relações entre as estruturas internas do sujeito e o mundo circundante, que geram um incessante movimento tanto no sujeito quanto em seu entorno. Desta forma, apesar dos conceitos de universo, de sociedade, de ser humano serem distintos, a atitude e o papel da filosofia mantêm-se os mesmos: conhecer para cuidar. Contudo, uma vez que não possuímos uma ordem cósmica ou divina que nos sirva como padrão, como pensar este equilíbrio?
Se afirmarmos que o parâmetro para encontrarmos nosso equilíbrio está na subjetividade, corremos o risco de construirmos uma sociedade excessivamente egoísta, egocêntrica, onde há um sujeito que detém o saber e o impõe aos demais. Ou onde há vários sujeitos que possuem o saber, cada qual a seu modo, e destroem-se uns aos outros em guerras cujo único objetivo é a auto-afirmação. Mas se conseguimos pensar que o parâmetro está num sujeito inserido no mundo, em relação com outros sujeitos; se conseguimos observar as constantes relações entre a estrutura interna desses sujeitos e seu entorno e estabelecemos como parâmetro ético a aceitação da legitimidade do outro – ainda que inteiramente diferente do eu, torna-se possível pensar na construção de um equilíbrio com flexibilidade, com mobilidade suficiente para lidar com a diversidade e com a singularidade. É esta postura de abertura ao diálogo, de respeito à legitimidade do outro em sua singularidade, de construção constante de modos de ser saudáveis – porque equilibrados e em movimento, que caracteriza a atitude filosófica presente na filosofia clínica.
Por que clínica?
A palavra clínica é oriunda da medicina. A medicina, desde a Antiguidade, divide-se entre a investigação das doenças – medicina como ciência, tendo como foco de atenção a pesquisa laboratorial; e medicina clínica – medicina como arte, tendo suas atenções voltadas para o paciente, para a pessoa. Do grego Klinikos, Kline, clínica corresponde ao leito do enfermo. A clínica médica, desde a Antiguidade, caracteriza-se por observar o leito do paciente, ou seja, o ser humano a receber cuidados. Os textos da escola hipocrática destacam a importância do médico conhecer o contexto desse paciente: as águas, os ventos da região; os hábitos da sociedade e do indivíduo, tendo como objetivo restaurar o equilíbrio perdido. Para tal, era fundamental conhecer os elementos internos ou externos ao paciente, prováveis causadores deste desequilíbrio. Para a escola hipocrática, da mesma forma que para a concepção socrático-platônica, um ambiente desequilibrado ou uma sociedade desequilibrada gerariam desequilíbrios na mente e no corpo de seus cidadãos.
Considerando a clínica como uma terapêutica que possui como centro a pessoa e não a doença; considerando a filosofia como uma atitude de construção de conceitos a partir de um problema de uma realidade singular, a filosofia clínica coloca-se como uma terapêutica centrada na pessoa e no respeito à sua singularidade, dispondo-se a pensar sobre o problema apresentado pela pessoa, a partir do plano de realidade singular daquela pessoa.
Como surgiu?
Essa idéia nada mais é do que um resgate do papel terapêutico que a filosofia já possuía em suas origens. Na década de 80, o movimento denominado filosofia prática inicia esse resgate, com vistas à construção de uma atividade de ajuda-ao-outro. Seu ponto de partida é um questionamento: se a psiquiatria e a psicologia utilizam a filosofia em seus métodos, por que um filósofo não poderia utilizar a metodologia própria da filosofia para ajudar as pessoas em suas questões cotidianas? O filósofo assume a função de cuidador, investido do conhecimento produzido em toda a história da filosofia.
No Brasil, o filósofo gaúcho Lúcio Packter, inspirado no trabalho da filosofia prática, propôs a filosofia clínica: um instrumental específico, próprio, adequado à realidade brasileira, e diferente dos trabalhos em filosofia prática. Packter recorta e seleciona do conhecimento filosófico, a metodologia necessária para desenvolver a atividade de ajuda-ao-outro, organizando-a de maneira flexível, de modo que não construiu uma teoria adequada a diversas pessoas, mas um instrumental de pesquisa que permite a construção do trabalho para cada pessoa em especial.
Características
Entre as atividades de ajuda-ao-outro, a Filosofia Clínica destaca-se por não trabalhar com teorias prévias, tipologias ou conceitos de normalidade. Aquele que procura ajuda é a medida, e como medida, é quem determina de que maneira poderá ser auxiliado. Pensar junto com o outro é o trabalho do filósofo clínico, norteado pelo respeito à legitimidade do modo de ser deste outro.
O que busca ajuda é chamado partilhante porque é aquele que partilha, que toma parte em, que participa ativamente de todo o processo clínico, compartilhando sua vida e suas questões com o filósofo clínico. Por sua vez, o filósofo clínico acolherá o partilhante e suas questões e partilhará com ele o conhecimento produzido pela filosofia, auxiliando-o a refletir sobre suas questões e dificuldades, a levantar e estudar possibilidades, a definir, construir e percorrer caminhos. Não se trata de teorizar sobre o sofrimento alheio, mas de auxiliar o outro a lidar com suas questões, diante das circunstâncias e possibilidades existentes.
Não se trata de um mero aconselhamento pautado em referenciais filosóficos, colocando em risco a vida das pessoas. Há uma série de procedimentos clínicos, estruturados de modo a permitir a identificação de sinais e sintomas que indiquem a necessidade de um trabalho interdisplinar, pois apesar de ser a mãe das ciências, a filosofia admite os limites e as especificidades de cada área do conhecimento e, por isso, o filósofo clínico não se habilita a trabalhar todo e qualquer problema. Há problemas de ordem orgânica, química, que precisam ser tratados com medicamentos. Há situações em que o instrumental da Filosofia Clínica não possui elementos adequados para o trabalho. Conferidas essas possibilidades, o filósofo clínico encaminha – mesmo que por precaução, para mera exclusão de possibilidades, ou ainda para um trabalho interdisciplinar – o partilhante para um profissional competente naquela área de atuação.
Como funciona?
Quando um partilhante procura um filósofo clínico, em geral o faz porque algo o incomoda, ou seja, há uma questão a ser trabalhada. Em conversa inicial sobre essa questão, filósofo clínico e partilhante estabelecem o primeiro momento da clínica: a interseção, a qualidade da relação entre ambos. Após a conversa, o partilhante preenche uma ficha clínica com dados pessoais, termo de esclarecimento e consentimento para o trabalho clínico. Caso trate-se de um partilhante que se encontre em acompanhamento psiquiátrico ou neurológico, o filósofo clínico informará sobre a necessidade de um trabalho interdisciplinar e entrará em contato com o médico responsável para estabelecer a interdisciplinaridade.
Partindo do princípio que nos construímos a partir da história de nossas vivências, o próximo passo consiste em colher o histórico do partilhante, contado por ele mesmo, cronologicamente e em detalhes. Esse histórico servirá de fonte para a obtenção de dados sobre os três eixos fundamentais: Exames Categoriais[2], Estrutura de Pensamento[3] e Submodos[4].
Enquanto o partilhante conta sua história, o filósofo clínico limita-se a interferências mínimas, apenas para permitir a Interseção, pedindo continuidade, levando a pessoa a retomar o curso de sua história em caso desta perder-se. Cabe ao filósofo clínico controlar sua curiosidade, suspender seus pré-juízos, a fim de evitar distorções, interpretações equivocadas, mal entendidos. Por esse motivo, a postura é de escuta atenta, contextualizando o histórico do partilhante, lendo-o a partir do instrumental filosófico-clínico.
Se o partilhante tiver dificuldade em contar um período de sua história, pode-se deixá-lo para depois, afinal, nos primeiros momentos da clínica, o filósofo clínico é um estranho para o qual o partilhante deve contar dados que muitas vezes são difíceis de expor, pode faltar confiança, pode ter medo de ser julgado, pode sofrer com as lembranças. O filósofo clínico compreende essas e outras dificuldades, por isso permitirá flexibilidade para que o partilhante conte sua história, entendendo que ele poderá, inicialmente, omitir dados, distorcê-los, mentir, inventar, entre outras coisas. Ainda assim, os dados inventados, distorcidos, o são a partir de referenciais do partilhante. Sua Estrutura de Pensamento desvenda-se ainda que o histórico contenha distorções. Além disso, na medida em que a Interseção se estabelece e que os outros procedimentos clínicos são efetivados, novos dados surgem, outros são corrigidos.
Há casos em que a dificuldade consiste em falar. A pessoa não consegue contar a história. Nesses casos, o filósofo clínico pesquisará se o partilhante possui outros dados de Semiose – veículos de expressão como fotos, textos, poemas, pintura, música, desenhos, gestos, expressões faciais, posturas corporais, enfim, instrumentos que auxiliem nesse processo. Esses instrumentos podem ser utilizados não apenas em casos de dificuldades, mas sempre que existirem e puderem propiciar acesso a dados não oferecidos pela fala. Esses dados serão contextualizados na história do partilhante e significados por ele.
No procedimento seguinte, Divisão, são feitas correções e aquisição de mais dados, pois ao contar a história, o partilhante poderá optar por uma linha de raciocínio, deixando de lado muitos outros elementos vividos. O procedimento divisório é repetido inúmeras vezes, até que não surjam novos dados.
Terminada a Divisão é o momento dos Enraizamentos. Trata-se de um processo epistemológico para pesquisar o conteúdo de termos, estabelecer relações, testar hipóteses clínicas. Nesse momento são feitas perguntas específicas sobre dados colhidos no histórico do partilhante. Até esse momento o filósofo clínico somente acompanhou a história, mantendo o partilhante no curso dela; dividiu-a em períodos determinados pelos dados colhidos no histórico e pediu que recontasse cada período. Neste momento, todas as dúvidas relativas ao histórico, questões ou termos que não estejam claros e que possuam pertinência clínica, ou seja, estejam vinculados às questões do partilhante, poderão ser esclarecidos.
Enquanto encaminha esses procedimentos, o filósofo clínico observará os três eixos fundamentais, atualizando os dados a cada consulta. Com dados suficientes para compreender o universo do partilhante: seu modo de ser – considerando que esse modo de ser está em constante movimento e, portanto, precisa de constante atualização; suas maneiras de responder às situações; localizado o Assunto Último, isto é, a questão a ser trabalhada, de fato, em clínica, o filósofo clínico preparará um Planejamento Clínico, analisando possíveis maneiras de auxiliar o partilhante. Esse planejamento inclui a leitura do todo da Estrutura de Pensamento: se há choques intra ou inter tópicos, quais são os tópicos determinantes, os permeáveis, os flexíveis, os estruturais; quais as possibilidades para trabalhar os choques; que modificações são possíveis e necessárias ao partilhante e quais as suas conseqüências. Juntamente a um conhecimento acerca dos contextos e das possibilidades concretas existentes nesses contextos.
O conhecimento da linguagem usual desse partilhante também é imprescindível, visto que partimos da premissa de Wittgenstein (1975) que a linguagem é um jogo e o significado das palavras está em seu uso. O filósofo clínico, durante a colheita de dados, pesquisa o jogo de linguagem do partilhante, e utiliza, para os procedimentos clínicos, esse mesmo jogo, para que as palavras tenham um significado unívoco, para que os objetivos clínicos não se percam numa linguagem incompreensível ao partilhante.
Considerando a possibilidade de novos dados surgirem na vida do partilhante durante os procedimentos clínicos, faz-se necessária, a cada consulta, uma atualização, pois eventos, fatos ocorridos entre uma consulta e outra, podem modificar dados extremamente significativos, invalidando o uso de alguns Submodos, ou ainda, modificando significados de questões ou relações. Assim, os primeiros momentos da consulta são destinados a essa atualização, onde o filósofo clínico pergunta sobre a semana, sobre como estão as coisas.
Uma vez organizado o Planejamento Clínico, o passo seguinte é a aplicação de Submodos. Esses procedimentos, totalmente subordinados aos Exames Categoriais, Estrutura de Pensamento e Submodos Informais, são aplicados e é acompanhado o resultado. Há casos em que o resultado é imediato, mas essa não é a regra. Em geral, faz-se necessário o acompanhamento por um período, variável de acordo com a complexidade das questões e as possibilidades clínicas do partilhante, até que a pessoa alcance o bem-estar subjetivo.
Entende-se aqui bem-estar subjetivo por bem-estar para o partilhante. Se ele sentir-se bem com os resultados da clínica, o objetivo foi atingido. Parte-se então, para o término do processo, que assim como todo o seu decorrer, dependerá do partilhante. Isso também será encaminhado de acordo com os dados pesquisados.
Os procedimentos aqui descritos são flexíveis, adaptáveis às necessidades de cada partilhante. Não existem, em Filosofia Clínica, procedimentos clínicos pré-determinados, aplicáveis a quaisquer casos, ou a determinados tipos. Apesar de termos uma lista com 32 Submodos, esses são mesclados, formando muitos outros. Não se trata de um processo de construção de tipos: para perfis “x”, Submodos “y”. Os procedimentos são exclusivos para cada partilhante, criados para cada caso em especial. Cada partilhante é um novo caso, um novo universo, que necessitará de novos procedimentos, criados para atender às suas necessidades.
Diante da exposição desse instrumental o leitor deve estar se perguntando: onde está a filosofia em tudo isso?
Em primeiro lugar na postura do filósofo clínico, que se dispõe a pensar junto com o partilhante, que usa o conhecimento em benefício do humano, que se posiciona como um constante pesquisador, em busca incessante de ampliação de seu conhecimento sobre as questões da vida, utilizando-o para o cuidado do outro.
Em segundo, toda metodologia utilizada na Filosofia Clínica é construída a partir de métodos filosóficos: Histórico, quando considera que o partilhante se constrói a partir de sua história e toma-a como ponto de partida para os exames iniciais; Fenomenológico, assumindo a postura de suspensão de juízos, considerando os dados literalmente, conforme são descritos pelo partilhante, atendo-se a Agendamentos Mínimos nos momentos iniciais da clínica; Empírico, quando considera a necessidade do conhecimento do universo circunstancial do partilhante para levantar hipóteses realizáveis na realidade existente, quando valoriza dados sensoriais como fonte do conhecimento; Lógico e Analítico, ao dedicar-se ao estudo e pesquisa dos significados e das estruturas da linguagem do partilhante, analisando-a não apenas sob o aspecto lógico formal, como também acerca das possíveis análises estruturais, sintáticas e semânticas; Epistemológico, pesquisando a gênese das questões, dos processos de construção de conhecimento atuais e possíveis, disponíveis ao partilhante.
Mas como é possível unir metodologias tão distantes como, por exemplo, Fenomenologia e Filosofia Analítica? É feito um recorte epistemológico que tem como critério fundamental as necessidades clínicas, tal recorte apresenta possíveis poros para o estabelecimento de interseções, aproximando diferentes metodologias.
Além disso, cada Categoria, Tópico da Estrutura de Pensamento e Submodo têm sua fundamentação em um filósofo ou escola filosófica. Não se trata de priorizar uma escola filosófica em detrimento da outra, mas de possibilitar a interseção entre elas, selecionando o que for necessário ao partilhante. Não são as preferências do filósofo clínico que contam para a construção do trabalho, mas as necessidades do partilhante. Assim, não há filósofos clínicos com orientação kantiana, existencialista, aristotélica, platônica, humeana, schopenhaueriana, nietzscheniana, etc. Há um instrumental construído com a contribuição de inúmeros pensadores. O que desse instrumental será utilizado em cada caso, depende do que for encontrado na pesquisa com o partilhante, que será o responsável pelo direcionamento da clínica.
Por sua constituição, por ter como objetivo principal o bem-estar subjetivo do partilhante, sem desconsiderar que ele está inserido em um universo concreto, coexistindo com outros e, portanto, é responsável por suas escolhas e ações, assim como por suas conseqüências no todo desse universo; por não partir de um conceito de normalidade pré-determinado, de um padrão pré-estabelecido, por fundamentar-se, principalmente, no respeito ao outro, a Filosofia Clínica é uma atividade essencialmente Ética.
Considerando a Ética como uma atividade reflexiva e não normativa, que não supõe regras fixas e sim flexíveis, adequadas a cada situação em especial, que compreende o todo dos elementos envolvidos na situação, a aproximação entre Filosofia Clínica e Ética dá-se porque ambas necessitam dessa flexibilidade, dessa compreensão do todo e da inter-relação entre os elementos que o compõe, porque ambas são essencialmente reflexivas e, principalmente, porque é exigida do filósofo clínico a atitude ética diante do partilhante[5].
Em hipótese alguma o filósofo clínico pode direcionar as ações do partilhante fundamentado em valores ou escolhas pessoais. É inaceitável que desenvolva uma relação de dependência, tornando-se um orientador constante do partilhante, permitindo a atrofia de sua autonomia. Que se necessite de ajuda em situações difíceis é compreensível, mas que se mantenha a ajuda por toda a vida, inaceitável.
Qual a formação do filósofo clínico?
Para atuar como filósofo clínico é necessário ter cursado Graduação em Filosofia e Especialização em Filosofia Clínica. No curso de Especialização em Filosofia Clínica é estudado o instrumental filosófico-clínico, a semiologia psiquiátrica – a fim de identificar casos em que se faz necessário o encaminhamento ao médico. É parte da formação a clínica didática – ser atendido por um filósofo clínica passando por todas as fases dos procedimentos clínicos – e o estágio supervisionado – atendimento com supervisão.
Para saber mais:
www.filosofiaclinica.com.br – site do Instituto Packter, nele está disponível o texto de Lúcio Packter, Filosofia Clínica: propedêutica. Há também a biblioteca virtual, com vários artigos e trabalhos de filósofos clínicos.
Revista Internacional de Filosofia Clínica – Informação Dirigida (informações sobre aquisição no site do Instituto Packter).
Livros:
AIUB, M. Para Entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
_____. Filosofia Clínica e Educação: a atuação do filósofo no cotidiano escolar. Rio de Janeiro: WAK, 2005
PACKTER, L. Filosofia Clínica: propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997.
_____. Ana e o Dr. Finkelstein: um caso tratado com filosofia clínica. Rio de Janeiro: WAK, 2006.
[2] Dados sobre o universo no qual o partilhante está inserido: Assunto, Circunstância, Lugar, Tempo e Relação.
[3] Modo de ser como o partilhante está estruturado, sempre em relação aos Exames Categoriais e Submodos. São trinta tópicos a serem observados: 1. Como o Mundo Parece; 2. O Que Acha de Si Mesmo; 3. Sensorial e Abstrato; 4. Emoções; 5. Pré-Juízos; 6. Termos Agendados no Intelecto; 7. Termos: Universal, Particular e Singular; 8. Termos: Unívoco e Equívoco; 9. Discurso: Completo e Incompleto; 10. Estruturação de Raciocínio; 11. Busca; 12. Paixões Dominantes; 13. Comportamento e Função; 14. Espacialidade: Inversão, Recíproca de Inversão, Deslocamento Curto e Deslocamento Longo; 15. Semiose; 16. Significado; 17. Armadilha Conceitual; 18. Axiologia; 19. Tópico de Singularidade Existencial; 20. Epistemologia; 21. Expressividade; 22. Papel Existencial; 23. Ação; 24. Hipótese; 25. Experimentação; 26. Princípios de Verdade; 27. Análise da Estrutura; 28. Interseções entre Estruturas de Pensamento; 29. Matemática Simbólica; 30. Autogenia.
[4] Formas de ação do partilhante e procedimentos clínicos subordinados aos outros eixos: 1. Em Direção ao Termo Singular; 2. Em Direção ao Termo Universal; 3. Em Direção às Sensações; 4. Em Direção às Idéias Complexas; 5. Esquema Resolutivo; 6. Em Direção ao Desfecho; 7. Inversão; 8. Recíproca de Inversão; 9. Divisão; 10. Argumentação Derivada; 11. Atalho; 12. Busca; 13. Deslocamento Curto; 14. Deslocamento Longo; 15. Adição; 16. Roteirizar; 17. Percepcionar; 18. Esteticidade; 19. Esteticidade Seletiva; 20. Tradução; 21. Informação Dirigida; 22. Vice-Conceito; 23. Intuição; 24. Retroação; 25. Intencionalidade Dirigida; 26. Axiologia; 27. Autogenia; 28. Epistemologia; 29. Reconstrução; 30. Análise Indireta; 31. Expressividade; 32. Princípios de Verdade.
[5] Conforme Código de Ética do Filósofo Clínico, disponível em http://www.filosofiaclinica.com.br, acesso em 15 nov. 04.
* Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida. Ano I, nº 1, 2006. Ed. Escala.