ENTREVISTAS ESPECIAIS - Lúcio Packter e Miguel Nicolelis

  
Uma entrevista com Lúcio Packter: prática e fundamentos da filosofia clínica

A Filosofia  Clínica existe há mais de quinze anos, não é  mais novidade, está semeada e floresce por todo o País e já projeta ramificações para o exterior. Emboa tenha superado muitos preconceitos, ela ainda causa reticências em algumas áreas. Como o Sr. analisa isso? 
Packter – Com os avanços da anatomia e da fisiologia, a medicina somente no século XIX constitui-se de fato em ciência experimental. Já a psicologia científica começa com Wilhelm Wundt e John  Watson, sendo, antes disso, quase um amontoado de especulações. E isso às portas do século XX. Em Filosofia Clínica essas mesmas concepções pré-científicas foram resolvidas já em Aristóteles, quando as concepções de Homero e Hesíodo, aquelas narrativas, mitos, caricaturas do que seriam mais tarde as reflexões, foram vencidas. Portanto, podemos considerar até que ponto são as reticências o produto de uma ignorância não assumida. Acredito que existe um processo natural de desenvolvimento que passa por estágios desde a implantação. A Filosofia Clínica está sendo a cada momento mais respeitada pelo trabalho que realiza. Na minha opinião a melhor atitude é a de um trabalho ético, bem fundamentado. Nunca houve unanimidade entre as escolas terapêuticas e não imagino que a Filosofia Clínica consiga isso.
A forma de  tratamento da Filosofia Clínica vem recebendo críticas severas dos conselhos de Psicologia e Psicanálise que afirmam temer que ela traga mais problemas que solução, que a nova  terapia filosófica pode mascarar sintomas. O que realmente diferencia o tratamento tradicional da Filosofia Clínica?
Packter – Não lidamos com sintomas sem a pesquisa profunda das causas. Seria como dar antitérmicos para debelar uma  febre negligenciando a infecção que a está causando; contraproducente e eticamente perigoso. Muitos dos meus colegas médicos, psiquiatras, psicanalistas e psicólogos têm se aproximado da Filosofia Clínica. Boa parte considera que a Filosofia Clínica possa trazer respostas pertinentes a temas intrincados, como a própria máscara do sintoma, que para o filósofo tem de fato outras propriedades. Isso porque às vezes mascarar o sintoma pode ser simplesmente a resposta a uma questão existencial. O que diferencia a Filosofia Clínica dos tratamentos tradicionais é o uso da historicidade, da lógica formal, da epistemologia e da fenomenologia como métodos e fundamentação. Isso implica na ausência de concepções de normalidade e patologia, de tipologias, de procedimentos clínicos a priori.  Também todos os escritos e os procedimentos derivam diretamente da Filosofia acadêmica.
No século XIX a loucura foi transformada pela Psiquiatria em doença mental. Para a Filosofia Clínica, o que pode ser  definido  como doença mental? Existe este conceito para o Filósofo Clínico?
Packter – Durante a Idade Média a loucura era tida como fato normal da vida habitual; na verdade, era também vista como manifestação benéfica ou maléfica dos céus. Mas com o Renascimento ela adquire a alcunha de patologia. Ainda que possível, acho realmente complexa a caracterização de manifestações subjetivas como sendo doenças mentais. Desde Foucault, em Histoire de la folie à l'âge classique,  isso não tem sido mais adequado. Ainda que Philippe Pinel tenha municiado, antes disso,  fôlego a discussão em seu Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale. Prefiro entender a “doença mental” como apenas mais uma manifestação existencial da pessoa. Assim, procuro entendê-la como ela se apresenta, em um fundo contexto de historicidade, para então interagir e colocá-la em um contexto de vida da pessoa. Na minha maneira de entender as coisas, o conceito de “doença mental” é avesso aos costumes hodiernos da Filosofia.
Mudando  de assunto. No que se refere a Filosofia Clínica e a Educação. Quais são os  novos parâmetros que ela traz para essa área?
Packter – Desde que o educador suíço Johann H. Pestalozzi pediu a generalização da instrução, a educação tem evoluído intensamente. Mas ainda que eu simpatize com alguns métodos, como o do médico Ovide Decroly, que se guiava pelo interesse da criança, ou o de Alexander S. Neill, em sua escola de Summerhill, o filósofo clínico procurará entender a maneira como a pessoa aprende algo, o que ela faz com esse aprendizado, o que isso interfere na existência dela, quais as conseqüências existenciais do ensino. Alguns filósofos anteriormente se ocuparam dessa questão, como Rousseau em O Emílio. A grande contribuição que a Filosofia Clínica pode trazer, inicialmente, à Educação diz respeito a levar a Educação ter uma interseção com a pessoa na qual seja respeitada essencialmente a subjetividade da pessoa. O gesso da fórmula pronta ruiu.
A análise de uma criança é diferente da de um adulto na Filosofia Clínica?
Packter – Há diferenças fundamentais. O filósofo faz a historicidade da criança através daqueles que são mais próximos a ela. Através então dos aspectos éticos, epistemológicos, axiológicos, semióticos e outros mais apresentados, o filósofo tem a chance de um contato mais demorado com a criança. Quase sempre a versão das pessoas que convivem de perto com a criança tem pouco a ver com a subjetividade dela. Por isso, faz-se necessário um ajuste posterior por parte do filósofo.
Que benefícios a Filosofia Clínica com crianças e adolescentes pode trazer, por exemplo, nos casos de drogas?
Packter – Nesses casos, a primeira providência é a desintoxicação hospitalar. O atendimento do filósofo será concomitante ou posterior ao atendimento médico. Cabe à Filosofia Clínica pesquisar então desde o uso da droga até as condições que permitiram sua aparição e desenvolvimento na vida da pessoa. A droga, como qualquer outra coisa, deve ser entendida no contexto atual e histórico na vida da pessoa.
Com adultos, em casos de fobias, distúrbio da sexualidade, depressão?
Packter – As manifestações que trazem a pessoa ao consultório, como fobias, uma vez contextualizadas, mostram a identidade, a natureza e as propriedades de suas constituições. Ao constatar que no pânico que a pessoa possui ao estar em público, como ele se originou, como se manifesta, como se desenvolve, os caracteres que o sustentam e perpetuam, o filósofo pode providenciar ações junto à pessoa para atenuar, explicar, extirpar o pânico; mas isso varia conforme as variáveis envolvidas. Às vezes uma fobia é necessária para evitar um dano maior, às vezes uma depressão é necessária como resgate de certos conteúdos que de outra forma não teriam remissão.
  Na prática, a Filosofia Clínica pode  traçar o perfil da personalidade humana a partir de um dado universal? Como por exemplo, dizer que a mulher de hoje busca sua independência, seu próprio caminho?
Packter – Existe uma lição em Lógica que serve bem como exemplo aqui: quanto maior é a ex te nsão menor é a compreensão. Evidentemente, se eu digo que a mulher de hoje busca sua independência, estarei deixando milhões de mulheres fora do meu entendimento. Os conceitos universais, fortes em Hegel, encontram debilidade na clínica; melhores ficam os conceitos singulares, de Kierkegaard. Assim, uma determinada mulher pode querer a liberdade, enquanto outra, imediatamente ao lado, a ignora placidamente.
Como se dá a Ética na Filosofia Clínica, se o mundo é a representação de cada um?
Packter – Ethikós: a ética subjetiva deve procurar uma interseção ao menos razoável com a éti ca objetiva, consensual, como maneira de se poder conviver no mundo. Deste modo, ainda que longe de um princípio de bem-estar, o estado de interseção entre o que eu penso e o que o outro pensa sofre constantes modificações, conforme a contingência daquilo que é vivido. O filósofo também obedece a uma ética social, como cidadão, que pouco às vezes lhe diz em sua ética subjetiva. As relações aqui não costumam ser calmas.
Segundo Umberto Eco, “quando o outro entra em cena, nasce a Ética”. Na Filosofia Clínica, é  possível ser bom cada um a sua maneira, sem com isso ameaçar  a vida do outro?
Packter – De certa forma vivemos um pouco o Zaratustra de Nietzsche, o que está longe de assegurar uma paz aos outros. Talvez hoje esteja evidente o quanto oscilamos entre a moral fechada (conservadora, baseada no hábito) e a moral aberta (fundada na emoção e no instinto), conceitos de Bergson. Kant, na questão do comportamento moral, procura a paz no dogma do "dever ser". E Hegel não apazigua ao diferenciar a moralidade subjetiva (consciência do dever) da moralidade objetiva ou eticidade (aparece nas normas e leis). O filósofo clínico constata que muitas vezes ao ser “bom” o indivíduo coloca em risco a vida do outro, que ironicamente também pode estar agindo da mesma maneira.
Como um filósofo clínico pode lidar com a morte?
Packter - Para Heidegger, a morte é a última possibilidade do homem. O ser-para-a-morte é o verdadeiro destino e objetivo da existência humana. Essa idéia é muito corriqueira hoje em boa parte dos filósofos. Mas, de minha parte, acho-a tão poética e improvável quanto a poesia simbolista e intimista de Alphonsus de Guimarães, poeta intimista, acometido eternamente pelo sentimento da morte. Na clínica, constato que há pessoas que não têm a morte em suas vidas; outras, destroem a morte simplesmente vivendo. Algumas pessoas não sabem da morte até que sejam avisadas por um filósofo. E enfim, existe um mar de entendimentos sobre isso. Como filósofo, estou interessado na verdade da pessoa, que não é necessariamente a verdade de Heidegger. A Filosofia Clínica poderá mostrar à pessoa um modo único e próprio de lidar com isso: através das concepções dela mesma, da pessoa.
     As psicoterapias  encontram na arte ( arte-terapia, psicodrama, teatro espontâneo, etc)  procedimentos para trabalhar questões existenciais. De que maneira a Filosofia Clínica procede diante da arte?
  Packter – Bem, acho que, de um modo geral, somente no século XIX a palavra “arte” começou a ser aplicada muito mais à criação estética. Porque desde o Renascimento o conceito derivou para coisas que pouco tinham a ver com o assunto. Mas quando vejo gente como Paul Klee e Kandinski fico pensando na desconstrução do conceito outra vez. Pois, quando o filósofo clínico pesquisa a estrutura do pensamento da pessoa, ele descobre que a arte pode ser utilizada como instrumento de elaboração de vivências, de negação ou destruição, de conformação, de adequação. Nesse sentido, há dadaísmos existenciais. Muitos são cubistas, impressionistas e nem sequer imaginam. No entanto, é também grotesco usar a arte como  panacéia. Muitos não querem, não gostam, não admitem. É claro que podemos aventar a possibilidade de que é assim que fazem então sua arte: por negação.
A  Filosofia Clínica traz uma ideologia?
Packter – Tomemos o conceito de ideologia utilizado por Marx, ao invés daquele empregado por filósofos durante a Idade Média. Em Marx, ideologia é um conjunto de idéias e conceitos relacionado aos interesses de uma classe social, mas não necessariamente seguido  por seus membros. Penso que qualquer coisa ensinada traz em si mesma uma ideologia. Assim também é com a Filosofia Clínica.
Com relação aos planos de saúde. Qual a perspectiva deles passarem a oferecer a Filosofia Clínica a seus usuários?  Haveria necessidade de os usuários solicitarem a celebração de convênios?
Packter – Os planos de saúde em breve poderão oferecer o atendimento que os filósofos clínicos prestam. Em todo o país os convênios com Universidades, associações, sindicatos têm sido crescentes nos últimos anos.


Miguel Nicolelis defende a soberania intelectual do Brasil e fala do seu trabalho com neurociência
Por que é que o sr. decidiu anunciar publicamente seu apoio à candidata Dilma Rousseff?
Porque desde as eleições do primeiro turno eu cheguei à conclusão que essa é uma eleição vital para o futuro do Brasil e eu estou vendo um debate que está se desviando das questões fundamentais na construção desse futuro e dessa maneira eu achei que como cientista brasileiro, mesmo estando radicado no Exterior — mas que tem um projeto no Brasil e tem interesse que o Brasil continue seguindo este caminho — eu achei que era fundamental não só que eu mas que todos que pudessem se manifestassem a favor e fizessem uma opção pelo futuro que a gente acredita que é o correto para o nosso país.
Que futuro é esse?
É o futuro da inclusão social, o futuro em que as crianças que ainda nem nasceram possam ter a educação, saúde, ciência, tecnologia e a possibilidade de construir os seus sonhos pessoais sejam eles quais forem. Futuro que nós, a sua e a minha geração não tiveram. E um futuro que não leve o Brasil a retornar a um passado recente onde nós tinhamos, além da insegurança financeira, uma total falta de compromisso com o povo brasileiro e com a coisa brasileira. Então, nesse momento para mim essa é uma eleição vital, é um momento histórico para o Brasil. Eu viajo pelo mundo inteiro e eu nunca vi o nome do Brasil e a reputação do Brasil tão alta (inaudível) e este é o momento de deslanchar de vez e não voltar para o passado.
Fale um pouquinho do projeto que o sr. tem em Natal pra gente e da importância que o sr. acredita que o governo Lula teve — eu já li muito o que o sr. escreveu a respeito — para que esse projeto fosse implantado.
Nosso projeto é o primeiro projeto no mundo que usa a ciência como agente de transformação social – ciência de ponta.
Quando, oito anos atrás, comecei esse projeto… fui a São Paulo, me disseram que não havia esperança de fazer nada igual fora de São Paulo, porque 80% da produção científica do Brasil está concentrada no estado de São Paulo.Eu usei isso como um diagnóstico dos erros passados, porque um país que quer se desenvolver como uma federação e que quer oferecer cidadania ao seu povo não pode concentrar a produção de conhecimento de ponta e a disseminação de conhecimento de ponta num único estado da União.
E aí eu propus de levar esse projeto de ponta — que é fazer neurociência como se faz em qualquer lugar do mundo, em lugares que são, que tem a dianteira da fronteira dessa área no mundo — na periferia de Natal, usando essa ciência para desenvolver uma série de projetos sociais que permitem que a criança tenha um projeto educacional desde a barriga da mãe — que faz o pré-natal dentro de nosso campus do cérebro — até a pós-graduação na universidade pública.
E o primeiro grande parceiro desse projeto foi o governo federal, foi o presidente Lula e a seguir quem eu considero o maior ministro da Educação que o Brasil jamais teve, dr. Fernando Haddad, que transformou não só as políticas públicas mas o pensar do Brasil em educação, concluindo e chegando à conclusão que toda criança brasileira tem direito a perseguir seus sonhos intelectuais e não só ser abandonada em alguma escola técnica para servir ao mercado de trabalho. Que ela pode ser física, química, bióloga. É isso o que nós fazemos.
Nós criamos um projeto de educação científica que é principalmente um projeto de educação para cidadãos, que vão lá no turno oposto da rede pública, são mil crianças no Rio Grande do Norte, 400 crianças no interior da Bahia — na terceira escola que nós acabamos de abrir — e nós vamos ampliar isso para 2 mil crianças no ano que vem e se tudo der certo para 4 mil crianças em 2012. E esse projeto só foi possível porque o Ministério da Educação e o governo federal acreditam, como a gente, que essas crianças da periferia de Natal, do interior da Bahia, do sertão do Piauí, do Amazonas, de Roraima, também tem direito à educação de altíssimo nível e a perseguir seus sonhos intelectuais.
E como é que isso se conecta com a campanha de Dilma Rousseff?
Essa é uma visão de país onde a cidadania é levada a todos os brasileiros, onde todos os brasileiros tem a oportunidade de acesso ao conhecimento e à informação para fazerem e tomarem decisões por si mesmos, de acordo com a sua própria visão do mundo. Eu acredito que a candidatura da ministra Dilma possibilita viabilizar esse futuro para o Brasil e a candidatura oposta, a candidatura do partido de oposição,  ela basicamente não tem mensagem alguma para o resto do Brasil, ela tem mensagem para a sua audiência, que é restrita, na minha opinião, ao estado de São Paulo e talvez até a cidade de São Paulo, não existe projeto de Brasil na outra candidatura. Enquanto a futura presidente do Brasil, Dilma Rousseff, tem um projeto de Nação que é o que sempre faltou para o nosso país.  Nós sempre tivemos projetos de alcançar o poder e nunca um projeto de Nação. E o que o presidente Lula fez que foi colocar o Brasil nesse caminho, só pode ser, na minha opinião, continuado, com as políticas públicas que a ministra Dilma tem proposto e que eu acredito vai dar continuidade. Se nós não tivermos essa disposição de ter um projeto de Nação, se nós optarmos como país pela outra proposta, eu temo que infelizmente o Brasil vai perder sua chance histórica de se transformar no país que todos nós queremos ter.
Dr. Nicolelis, qual é a importância do conhecimento que o sr. está transferindo — o sr. está em Duke, agora?
Estou aqui em meu laboratório da Duke [University, na Carolina do Norte] nesse momento, mas quarta-feira já estou viajando para o Brasil, para Natal, onde nós montamos um centro de pesquisas de ponta, de neurociências. Nós estamos transferindo conhecimento, inovação, do mundo todo… Nós estamos a ponto de receber o que vai ser um dos mais velozes supercomputadores do Hemisfério Sul, doado pelo governo da Suiça, um dos maiores centros de tecnologia do mundo – a Escola Politécnica de Lausanne, que fechou um convênio com nosso instituto de cooperação internacional – então nós estamos criando em Natal, na periferia de Natal, num dos distritos educacionais mais miseráveis do país, um centro de disseminação de conhecimento de ponta que está transformando não só a neurociência brasileira como a forma de educar as crianças e a forma de trazer as mães destas crianças para dentro de um projeto de inclusão e de cidadania.
Nós estamos construindo lá o primeiro campus do cérebro do mundo, não existe nada igual em nenhum lugar do mundo. E quando o governo suiço veio visitar as obras, veio ver o que nós estávamos fazendo, eles ficaram completamente encantados. Então, eles decidiram fechar um acordo de colaboração conosco ao mesmo tempo em que eles estão fechando um acordo com a [Universidade de] Harvard. Ou seja, nós ficamos em pé de igualdade com a maior universidade do mundo pela inovação da proposta que nós temos na periferia de Natal, provando que em qualquer lugar do Brasil algo desse porte pode ser feito.
Dr. Nicolelis, além do governo federal e agora do governo da Suiça, existem outras entidades ou instituições privadas colaborando com esse projeto?
Ah sim, este é um projeto privado. Mais de dois terços dos nossos fundos e do nosso suporte financeiro vem de doações privadas de brasileiros que moram fora, no Exterior, de fundações europeias, americanas, nós temos parcerias — inúmeras — pelo mundo afora e a beleza disso é que para cada real investido pelo governo federal nós conseguimos coletar quase três reais privados no Exterior e mesmo dentro do Brasil — o hospital Sírio Libanês, por exemplo, é um de nossos parceiros, a Fundação Lily Safra, da brasileira Lily Safra, é uma outra parceira. Nós conseguimos captar para cada real investido publicamente quase três reais privados, mostrando que é possível, sim, realizar parcerias público-privadas que tenham um fundo e um escopo social tão grande quanto este projeto.
Dr. Nicolelis, qual é a importância de o Brasil desenvolver as suas próprias tecnologias em conjunto com universidades de outros países para a soberania nacional e para a capacidade do país inclusive de reduzir a importação de equipamento fabricado fora do Brasil?
Ah, sem dúvida, eu acho que a Petrobras é o grande exemplo, a Petrobras e a Embraer. Nós precisamos de Googles, Microsofts, IBMs brasileiras. Nós precisamos transferir o conhecimento de ponta gerado pelas nossas universidades e pelos nossos cientistas — e o Brasil tem um exército de fenomenais cientistas dentro do Brasil e espalhados pelo mundo que estão dispostos, como eu, a colaborar com o Brasil. Nós temos que criar uma indústria do conhecimento brasileira. É uma questão de soberania nacional. A questão que me chamou a atenção agora, no começo da campanha do segundo turno, a questão da Petrobras, ela se aplica à indústria do conhecimento, que vai ser a indústria hegemônica na minha opinião, no século 21, que pode vir a ser o século do Brasil.
Mas, para isso, nós temos que investir no talento humano. Nós temos que criar formas dessa molecada — como as nossas crianças de Natal — de se transformar em cientistas, inventores, de uma maneira muito mais rápida e ágil do que as formas tradicionais que requerem todo esse cartório até você receber um doutorado e ser reconhecido oficialmente como cientista. Eu estou encontrando crianças no nosso projeto, por exemplo, de 17, 18 anos, que estão sendo integradas às nossas linhas de pesquisa antes mesmo delas entrarem na universidade, porque elas tem o talento científico, talento de investigação, curiosidade e que podem dar frutos muito mais rápidos do que a minha geração deu para o país.
Mas este investimento que pode ser feito com os fundos que vão vir do Fundo Social do Pré-Sal tem que ser feitos para revolucionar a ciência brasileira e criar uma coisa que eu gosto de chamar de “ciência tropical”, que é a ciência do século 21, aplicada às grandes questões da Humanidade — energia, ambiente, suplemento de comida, suplemento de água, novas formas de disseminação democrática da informação — tudo isso faz parte do escopo dessa “ciência tropical” em que o Brasil tem condições plenas de ser, se não o líder, um dos grandes líderes deste século.
Dr. Nicolelis, onde que está aí o nexo entre o que o sr. acabou de dizer, que o sr. mencionou, e a riqueza da biodiversidade brasileira, que ainda não é explorada?
Nós nem sabemos o que nós temos, Azenha. Nós nem tivemos a chance de mapear essa riqueza. Todo mundo fala dela mas ninguém pode dar uma dimensão. Então, esse discurso que eu ouço, ambientalista, superficial, que foi caracterizado no primeiro turno, inclusive, da eleição, ele não serve para nada, porque ele não aprofunda nas questões vitais.
As questões vitais é que a soberania do Brasil também depende de investimentos estratégicos no mapeamento das riquezas que nós temos, do que pode ser feito para o povo brasileiro em termos de novos medicamentos, novas fontes alimentares, novas fontes de energia. Existem dezenas de sementes oleaginosas do semi-árido que são não-comestíveis, que são muito mais eficientes na produção de óleo do que a mamona, por exemplo, que poderiam ser usadas em projetos de parceria de cooperativa no interior da caatinga do Brasil, para se produzir óleo biocombustível para trator, caminhão, que aliviariam tremendamente os custos da produção alimentar, familiar, nessa região do Brasil.
Isso precisa ser explorado, precisa ser mapeado com investimentos em pesquisa básica, em estudos de genômica funcional dessas plantas, tentar entender porque elas conseguem produzir esses óleos de alto valor energético e tentar transferir isso para a economia do Brasil. Existe toda uma economia que pode ser altamente sustentável, que pode preservar muito melhor o ambiente do que nós estamos fazendo até hoje e que pode servir de retorno em empregos e conhecimento que ampliariam ainda mais a matriz renovável energética brasileira.
Então, são coisas que estão na nossa cara e que eu acho que só uma política voltada para o Brasil, uma política que dê continuidade ao que o presidente Lula iniciou nestes oito anos, vai ter condições de manter dentro do Brasil. Porque existem evidentemente interesses enormes nessas riquezas nacionais, existe um interesse enorme nos cérebros brasileiros que estão desenvolvendo essas ideias e nós temos que manter isso de uma maneira agregada ao Brasil e não simplesmente dar isso de mão beijada para o primeiro que bater na porta com uma oferta ridícula de privatização ou da venda de nosso patrimônio intelectual para fora do Brasil.

 SOBRE A INTERSEÇÃO ENTRE HUMANOS E AS MÁQUINAS: AS PRÁTICAS DE MIGUEL NICOLELIS

São Paulo - Líder do experimento que conectou o cérebro de macacos a computadores, Miguel Nicolelis explica uso do PC pelos pensamentos.
Em 1984, quando a Apple apresentava a interface gráfica do Macintosh, um homem ganhou os louros por aproximar a computação do usuário comum: Steve Jobs. Mais de duas décadas depois, o desenvolvimento do que pode ser a próxima revolução na maneira como se usa o computador pessoal está sendo liderada por um brasileiro: o paulistano Miguel Nicolelis, líder do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.
Nicolelis foi responsável por liderar a equipe que, em 2000, conseguiu conectar o cérebro de um macaco a um computador. A inédita conexão entre neurônios e processadores permitiu que o símio jogasse um simples game com o pensamento a abriu precedentes para a introdução do pensamento na computação.

Assumidamente otimista quanto à mistura entre homem e máquina, Nicolelis prevê, nesta entrevista, que se chocou na interface gráfica e agora planeja aplicar os avanços da neurosciência para controlar PCs apenas com pensamentos.Até que a tecnologia amadureça para uso em massa, o pesquisador, apontado como um dos 100 cientistas mais importantes do mundo em 2004 pela revista Science, revela planos de levar experimentos para humanos.
Além de uma parceria com o hospital Sírio Libanês, em São Paulo, para experimentos do tipo, Nicolelis também está por trás do Instituto Internacional de Neurosciência de Natal, estabelecido na capital potiguar para incentivar um modelo de ciência ignorado no Brasil, além de arcar com sua responsabilidade como cientista, algo que a academia brasileira, diz ele, ignora totalmente.

Qual o impacto nos humanos que seu estudo poderá ter no futuro?
Miguel Nicolelis: Devemos ampliar os benefícios para pacientes com lesões neurológicas graves. Porém, ainda é uma técnica invasiva, o que impede sua aplicação no primeiro instante em humanos. Pacientes com paralisia ou derrame que ficam incomunicáveis poderão se beneficiar desta técnica para que o cérebro se expresse sem ajuda do corpo. Gosto de dizer que, finalmente, o cérebro pode se declarar independente do corpo. Por outro lado, a tecnologia abre possibilidades no futuro, com melhoria dos métodos e estabelecimento de técnicas não invasivas, de um ser humano normal ampliar sua capacidade de atuação no ambiente.

Seria trazer para a realidade as capacidades apresentadas pelos ciborgues da ficção científica?
O problema do ciborgue é que, como ele vem da  literatura de ficção científica, tem uma conotação muito maquiavélica, da perda da humanidade. Sou otimista neste caso. Sonho com o dia em que meu laptop, quando eu sentar para trabalhar, me faça sentir dentro dele, por meio de uma experiência muito realista para interagir com os gráficos que eu faço e com os textos que escrevo. Minha interação com este sistema agora é pelo teclado, o que é irritante demais. O cérebro assimila as ferramentas que a gente cria, tal qual um violinista ou tenista. 
Na realidade, tenho visão otimista das possibilidades que se abririam a partir do momento que se pudesse interfacear suas vontades e suas sensações com ferramentas que a gente cria. Para pessoas que nascem com defeitos cognitivos ou de aprendizado congênito, a perspectiva de utilizar recursos cerebrais que ainda restam para melhorar o déficit gerado por esta patologia vai ser tremenda. Pacientes com doenças como Mal de Parkinson também poderão ser beneficiados no futuro.

A aplicação prática do seu experimento como interface computacional pode ser uma revolução tão grande quando o Macintosh, da Apple, introduziu a interface gráfica em 1984?
É esta a idéia, que remete à minha vida de estudante em São Paulo. Por insistência do meu filho, resolvi comprar  um Macintosh com monitor de 30 polegadas para ver como eu me sentia com interface da Apple. Foi uma revolução na minha cabeça, porque era algo melhor do que o IBM PC. Fico pensando como vai ser o dia em que eu sentar na frente do PC e puder pegar meus textos e fotos sem mexer a mão, como se estivesse mergulhado no meu gráfico a cada vez que eu ligo o PC. Meu pensamento controla basicamente esta interface gráfica. Será uma revolução e ela virá. As empresas de computação estão começando a descobrir que o segredo da nova interface computacional esteja na neurociência.